Acesso a água e recursos
Acesso a água e recursos Acesso a água e recursos © Janine Rodríguez/TNC Photo Contest 2021

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Os desafios e oportunidades para garantir acesso a água e aos recursos aquáticos

Para proteger a água é preciso ter um olhar amplo e uma abordagem inclusiva

Por Claudio Klemz - Especialista em Políticas Públicas para Água da TNC Brasil

Água de beber, água de benzer, água de banhar...A sequência da canção lembra que o álcool pode até desinfetar, mas beber, benzer, banhar são prioridade. Sem falar na economia, que sem água, também padece. Nos dois anos que se passaram, durante a pandemia, ficou claro o quanto lavar as mãos e manter a higiene é essencial para mantermos nossa saúde e nossa vida. Ainda assim, muitas pessoas se veem desprovidas desse bem natural tão básico: a água. As populações menos favorecidas, sempre acabam sofrendo mais, mas habitantes de médias e grandes cidades também têm vivenciado situações duras como regimesde racionamento hídrico–Curitiba, São José do Rio Preto, Itu, Bauru, são apenas alguns exemplos–ou observam o nível dos reservatórios de abastecimento minguara níveis críticos, como é caso da Região Metropolitana de São Paulo e seus quase 22 milhões de habitantes. Em 2021 o valor das contas de energia elétrica foi um dos termômetros. Embora o Brasil conte com uma matriz energética variada e, em parte, renovável, cerca de 65% da energia vêm de usinas hidrelétricas. Renovável, portanto, somente se o ciclo hidrológico permanecer sem perturbações. Do contrário, recorremos aos velhos combustíveis fósseis, acionando emergencialmente usinas termoelétricas, aumentando as emissões de carbono e alimentando o ciclo de mudanças climáticas. Em setembro de 2021, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas(IPCC) da Organização das Nações Unidas (ONU) publicou a primeira parte do sexto relatório de avaliação que reúne os últimos avanços na ciência do clima e consolida a base científica mais atualizada sobre o sistema climático global. Elaborado por 234 cientistas de 65 países, e embasado em mais de 14.000 artigos científicos, o relatório traz conclusões incisivas sobre como as recentes mudanças no clima são generalizadas, estão se intensificando de maneira sem precedentese têm origem devido a ação humana. O alerta não vem só do campo científico. Economistas e grandes lideranças, dentre as mais relevantes do planeta, também fazem a advertência com muito embasamento técnico. Os relatórios anuais de risco à economia global do Fórum Econômico Mundial vêm recorrentemente listando dentre os cinco principais riscos à economia global: os extremos climáticos, os desastres naturais e a falha de governos e empresas em priorizar o investimentona adaptação e mitigação às mudanças climáticas. Tais riscos são destacados tanto em termos de probabilidade, quanto em termos de impacto. As mudanças climáticas já afetam todas as regiões do planeta de múltiplas formas e eventos climáticos extremos–como ondas de calor, chuvas fortes e secas–tendem a ser mais frequentes e mais graves. A mesma São Paulo da crise hídrica também sofre com recorrentes alagamentos e os noticiários recentemente mostraram municípios do estado da Bahia sofrendo devido às chuvas intensas. Os exemplos de extremos climáticos são abundantes. Embora benzer não faça mal algum, temos a reponsabilidade de buscar caminhos e soluções por nós mesmos.

BACIA DO TAPAJÓS, AMAZÔNIA.
ÁGUAS DO TAPAJÓS BACIA DO TAPAJÓS, AMAZÔNIA. © DANIEL GUTIERREZ GOVINO

Oportunidades e riscos no Brasil

Em meados de 2020 foi promulgado o novo marco legal do saneamento, através da Lei nº 14.026/20, que estabelece as diretrizes nacionais para o saneamento básico. Demanda incontestada, o Brasil precisa avançar muito, e rápido, na melhoria das condições de saneamento básico. Falando unicamente sobre a oferta de água, sem tocar em outros temas relativos ao saneamento, a TNC vem explorando uma oportunidade importante. O novo marco legal do saneamento traz a universalização do acesso ao saneamento básico como uma meta, refletindo os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável da ONU e abrindo as portas do setor de saneamento para a modernização. Historicamente, ao buscar soluções para os problemas de abastecimento, este setor lança mão de investimentos em infraestrutura para buscar fontes de água mais distantes. No entanto, com base nos alertas mencionados, cada vez mais faz sentido adotar também as soluções baseadas na natureza de maneira complementar. Afinal, universalização vai além de tubulações e torneiras chegando a cada família. É preciso que por elas flua água –viva e limpa–para beber, banhar e benzer. O serviço de abastecimento de água é atividade que implica primariamente na captação de água em um corpo hídrico –um rio, lago, reservatório ou fonte subterrânea–o que depende essencialmente da qualidade do manancial. Aproteção destes nobres espaços territoriais –os mananciais –é o primeiro passo para garantir o abastecimento de água potável e para a resiliência das cidades. Juntamente com a Associação Brasileira de Agências Reguladoras (ABAR),a TNC elaborou uma profunda e compreensiva revisão do marco legal brasileiro no que se refere ao papel do setor de saneamento na proteção de mananciais. Em diversos de seus dispositivos, desde a Constituição Federal até dispositivos infra legais, nosso marco legal não só abre essa possibilidade, como traz responsabilidade ao setor de saneamento para atuar em conjunto com as demais políticas públicas. Na gestão territorial de mananciais é implícita e necessária a coordenação de políticas públicas, pois os temas saneamento básico, recursos hídricos, saúde e meio ambiente são intrinsecamente relacionados. Para tanto, a TNC tem trabalhado com atores do setor, como ARSESP, Sabespe outros, para incorporar a proteção de mananciais às atividades do setor de saneamento, além de promover a devida articulação com outras políticas públicas a fim de ampliar a segurança hídrica. Uma grande oportunidade! Embora a temática hídrica seja central tanto para nossa qualidade de vida, quanto para nossa economia, a gestão dos recursos hídricos no Brasil vive um momento delicado. Os instrumentos previstos na Lei nº 9.433/97, que estabelece a Política Nacional de Recursos Hídricos–a Lei das Águas –promulgada há mais de 20 anos, seguem na vanguarda conceitual, na medida em que priorizam a participação social e a gestão descentralizadamas, na prática, diversas lacunas ainda existem para que se atinja a plena funcionalidade desta política. Não bastassem as lacunas de implementação, interesses contrários têm buscado desmontar esta legislação. Como exemplo, em dezembrode 2021 o Poder Executivo apresentou ao Congresso Nacional um projeto de lei alterandoa Lei nº 9.433 e a Lei nº 9.984, que cria a Agência Nacional de Águas, propondo alterações profundas que desmontam as bases da Política Nacional de Recursos Hídricos. Mesmo contando com canais estabelecidos de participação da sociedade, como o Conselho Nacional de Recursos Hídricos, a proposta não passou por nenhum debate com a sociedade até o momento. Caberá à sociedade civil exercer sua atuação através do Congresso Nacional para defender os princípios e a vanguarda da Lei das Águas.

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As mudanças climáticas já afetam todas as regiões do planeta de múltiplas formas e eventos climáticos extremos tendem a ser mais frequentes e mais graves.

Uma frente de trabalho é o Observatório de Governança das Águas, coletivo que reúne mais de 60 instituições e pesquisadores, onde a TNC busca fomentar a aplicação prática dos instrumentos do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (SINGREH) como Comitês de Bacia, Planos de Bacia, a outorga e a cobrança pelo uso da água, para citar alguns.Através do Protocolo de Monitoramento da Governançadas Águas e utilizando indicadores de governança, o protocolo auxilia comitês a construir planos de ação para planejar, estabelecer metas, melhorar e ampliar as capacidades institucionais e humanas e fazer a devida avaliação de sua gestão. O Protocolo de Monitoramento da Governança já foi adotado por 9 Comitê de Bacia e está em análise por outros 20 comitês. A despeito da Política Nacional de Gestão de Recursos Hídricos originalmente ter sido fruto de amplo debate e negociação entre sociedade e governo, este rico marco legal está ameaçado. Em resposta à situação de escassez hídrica, que tem afetadotanto o setor elétrico como o abastecimento público, foi criada através de Medida Provisória, a Câmarade Regras Excepcionais para Gestão Hidroenergética. Ainda que em caráter temporário, a ação inverte os papéis da Agência Nacional de Água–o regulador–e o setores usuários que devem ser regulados, centralizando no setor energético as decisões sobre o enfrentamento da crise hídrica. Na mesma esteira, o executivo apresentou ao Congresso Nacional projeto de lei que pretende alterar a Lei nº 9.433/97. A situação demanda atenção da sociedade para que os princípios estabelecidos na Lei das Águas e na própria Constituição Federal prevaleçam.

Estação de tratamento de água no município de Lucas do Rio Verde-MT.
SEGURANÇA HÍDRICA Estação de tratamento de água no município de Lucas do Rio Verde-MT. © Rui Rezende

Grandes territórios, grandes desafios

A TNC Brasil também tem buscado expandir sua agenda de água para outros territórios como a região do Araguaia e Pará. Com contextos socioeconômicos e ambientais particulares, estas regiões têm demandado nossa atenção exigindo um olhar mais amplo e atento às suas particularidades, às pessoas que ali vivem e àproteção dos ecossistemas aquáticos. A ideia de “Rios Protegidos”, através da qual se busca assegurar a conectividade hidrológica, a vazão ecológica e a proteção da biodiversidade aquática e de hábitats, é um tema que ganha evidência. Originada em grandes altitudes, as águas da Amazônia correm por praticamente todas as zonas térmicas até se derramarem no Atlântico. Os ecossistemas aquáticos da Amazônia representam entre 17 e 20 por cento da água doce do planeta e fornecem água e alimentos para 34 milhões de pessoas que vivem na região, incluindo mais de 280 diferentes povos indígenas. Temos o desafio de atuar como agente catalizador, agregando diversos atores em torno do planejamento integrado nestas regiões. Junto à demanda por conservação da biodiversidade aquática, trabalhamos para a adequada gestão e governança dos recursos hídricos visando tanto a produção, a proteção de ecossistemas terrestres e a restauração de áreas hidrologicamente sensíveis, sem esquecer das populações que dependem do acesso e água e seus recursos. Iniciativas como o projeto Águas do Tapajós, que tem por objetivo contribuir para o desenvolvimento local, aumentando o conhecimento de comunidades de ribeirinhos na Bacia do Tapajós sobre o uso sustentável dos recursos aquáticos e a conservação da biodiversidade de água doce, buscam valorizar o conhecimento tradicional para fortalecer a proteção da natureza e da biodiversidade. Neste contexto, além de beber, banhar e benzer, a água também é fundamental para alimentar e unir pessoas, conectando comunidades e culturas.

Com um olhar amplo sobre este rico o complexo cenário, a equipe da TNC Brasil tem planejado suas ações de conservação da água buscando alcançar resultados concretos em 2030. Uma década que reserva muitas surpresas e desafios, tanto da natureza quanto da sociedade.