A responsabilidade compartilhada para manter a saúde dos sistemas hídricos
Os efeitos do aquecimento global nos fazem correr contra o tempo na busca por soluções para continuar tendo acesso a recursos naturais como a água.
Por Samuel Barrêto - Gerente de Água e Sistemas Alimentares da TNC Brasil
Os efeitos cada vez mais perceptíveis do aquecimento global nos levam a um cenário de urgência: corremos contra o tempo na busca por soluções nos permitam refrear a crise climática, permitindo que continuemos a ter acesso a recursos naturais vitais. Entre eles, a água. Para que isso seja possível, é necessário pensar para além de nossas torneiras, e assumir, coletivamente, a responsabilidade de cuidar e entender que no caso da água, é preciso uma atuação de planejamento e atuação em âmbito da bacia hidrográfica. Até porque as águas não reconhecem limites administrativos. E parte da solução desse quebra-cabeça para promover a segurança hídrica é a restauração, recuperação e integridade dessas áreas. Para que dessa forma, seja possível promover o que chamamos dos usos múltiplos da água, entre eles, o abastecimento humano.
Um exemplo que vem do outro lado do mundo, mais precisamente da Austrália, ilustra bem essa realidade. Por lá, quase dois terços da área terrestre são dedicados à agricultura, gerando 93% do suprimento doméstico de alimentos, bem como a indústria de exportação. Por ser uma região muito seca, é necessário que haja irrigação extensiva dos sistemas fluviais para manter esse nível de atividade agrícola, o que trouxe consequências severas tanto para os fazendeiros quanto para os rios. Alguns desses sistemas fluvias foram esgotados até quase a exaustão, e com isso, é claro, os produtores ficaram sem água quando as secas chegaram.
Diante disso, o governo australiano a adotou medidas na década de 1990, colocando um limite nos desvios de água e regulando o uso por meio da emissão de direitos de água, que dão aos fazendeiros e outros usuários acesso a um volume anual específico de água dos rios e lagos. Esses direitos podem ser comprados, vendidos ou arrendados por meio de um "mercado de água" aberto.
Inicialmente, para os fazendeiros, essa medida ofereceu uma nova maneira de obter mais água para sustentar as plantações durante as estações secas. Em contrapartida, para os ecossistemas hídricos, os direitos de água ainda estavam superalocados em algumas regiões, incluindo a Bacia Murray-Darling, que drena um sétimo do continente. Para proteger os ecossistemas em rápida degradação na bacia, o governo australiano precisou comprar de volta quase 20% das cotas da região para permitir que essa água de voltasse para o meio ambiente.
Por aqui, cerca de 12% das reservas de água doce superficiais do planeta, e 53% dos recursos hídricos da América do Sul, e com um clima ameno, o Brasil também vem sofrendo com o esgotamento de seus ecossistemas. Um levantamento do Mapbiomas mostra que a seca severa que atingiu a Amazônia nos últimos dois anos levou a uma redução de 4,5 milhões de hectares na superfície alagada do bioma. O país, como um todo, apresenta uma tendência de perda da superfície de água, o que traz muita preocupação diante de uma questão estratégica e de interesse nacional.
Embora sejamos um dos dez países com maior área preparada para irrigação do mundo, com cerca de 6,95 milhões de hectares equipados para este tipo de uso de água, o segmento da agroindústria se encontra em um grande dilema entre a crescente demanda por alimentos e o aumento da pressão sobre os recursos naturais e conflito com outros usuários de água. Isso porque mais de 50% da água doce do país é usada para irrigação agrícola. E há um potencial efetivo de expansão da agricultura irrigada para outros 11 milhões de hectares.
E se de um lado há uma tendência de redução de superfície de água nos diferentes biomas, de outro lado, existem prognóstico de aumento para os diferentes usos de água. E a “conta” não fecha.
Não consideramos, no entanto, que uma das respostas no Brasil seja o “mercado de água” a exemplo do que acontece da Austrália. Pelo contrário, até porque são contextos bem diferentes entre os países. Cabe ressaltar que, no Brasil aproximadamente 35 milhões de pessoas não têm acesso à água. E mecanismos como esse poderiam acentuar ainda mais as desigualdades e exclusão uma vez que estamos tratando de um Direito Universal, o acesso à água.
Porém, para evitar que enfrentemos uma situação caótica como a seca histórica que ocorreu na Austrália, é essencial considerar alternativas promissoras. Entre elas, reconhecer a importância estratégica da recuperação das bacias hidrográficas para que não fiquemos exclusivamente dependentes dos regimes de chuva. Uma dessas opções é a agricultura regenerativa, modelo que se baseia na diversidade e integração, promovendo a variação de espécies vegetais e animais, a ampliação da diversidade genética e a otimização das funções ecológicas. Além disso, valoriza a conexão entre esses elementos e estimula a cooperação entre os atores locais.
Outro aspecto fundamental é a eficiência no uso de recursos e a reciclagem, que priorizam a utilização sustentável de insumos renováveis locais, como energia, nutrientes e água. Essa abordagem reduz a dependência de fontes externas e contribui para a recuperação e o aproveitamento de áreas degradadas. A agricultura regenerativa é um exemplo de que fortalecer as Soluções Baseadas na Natureza (SbN), inspiradas em práticas sustentáveis de restauração e conservação florestal e manejo correto do solo, ajuda a recuperar a saúde das bacias hidrográficas.
É pensando nisso que a The Nature Conservancy (TNC) Brasil desenvolve o programa Coalizão pelas Águas, buscando aplicar os atributos da natureza beneficiando a gestão hídrica, ao mesmo tempo em que engaja o setor público e as empresas e a sociedade civil na conservação, recuperação e governança de bacias hidrográficas. A meta é combinar segurança hídrica e alimentar para ampliar a escala e o impacto da recuperação das bacias inicialmente em regiões do Cerrado e Mata Atlântica. Dessa forma, a iniciativa potencializa a resiliência e adaptação dos corpos hídricos frente às mudanças climáticas, além de fomentar a equidade social no direito ao acesso à água de boa qualidade.
Especificamente sobre o Cerrado, cabe lembrar que, das 12 Regiões Hidrográficas existentes no Brasil, 8 se encontram no Cerrado. É por isso, que esse bioma é chamado de “Berço das Águas” do Brasil.
Que o Dia Mundial da Água nos leve a reflexões e ações transformadoras sobre a forma como temos usado os recursos oferecidos pela natureza. Porque, seja na aridez da Austrália, ou no clima tropical brasileiro, o fato é que já não há possibilidade de soluções que envolvam apenas um ator ou uma solução isolada. Somente o comprometimento coletivo, a complementariedade do conjunto de soluções adaptadas e adequadas para cada ambiente combinadas com a boa governança e investimentos financeiros serão capazes de reverter o cenário crítico em que chegamos. A boa notícia é que ainda nos resta tempo para essa reversão. Por meio dessas SbNs será possível responder por cerca de 37% das medidas de combate às mudanças climáticas. E não podemos renunciar a elas. Além disso, há uma grande oportunidade de que as SbNs se tornem uma grande cadeia produtiva. Indutora de desenvolvimento regional, geração de emprego e renda, inclusão social, movimentação da economia por meio da recuperação das bacias hidrográficas e dos ecossistemas. Iniciativas que possam de fato alcançar escala e impacto necessárias para que pessoas e natureza prosperem conjuntamente. Afinal juntos podemos encontrar esse caminho!
Publicado originalmente em Galileu
28 de março de 2025
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