Mudanças climáticas impactam muito além da natureza; o que devemos fazer?
Especialista da TNC Brasil destaca as múltiplas dimensões da emergência do clima e seus efeitos em áreas remotas do país, sobretudo em termos sociais
Por Edenise Garcia
As alterações no sistema climático do planeta provocadas pelo aumento da concentração de gases de efeito estufa têm afetado toda a vida na Terra, a natureza e as infraestruturas humanas. Os impactos gerados são amplificados por vulnerabilidades criadas por condições sociais e ambientais, como pobreza e moradia em áreas de risco, desmatamento e degradação de recursos naturais, quebras na produção agroalimentar, conflitos, epidemias e uma extensa lista de outros fatores.
Sendo assim, efeitos múltiplos e em cascata colocam cada vez mais em risco a economia, a segurança alimentar e hídrica, a biodiversidade, a saúde e o bem-estar das pessoas. Nem áreas rurais ou remotas escapam.
Segundo relatório recente da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) sobre impactos na agricultura e segurança alimentar, nos últimos 30 anos, a agricultura e a pecuária globais perderam cerca de US$ 3,8 trilhões devido a catástrofes, a maioria delas ligada a eventos climáticos extremos.
Esse valor equivale ao dobro do Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil em 2022. Os países mais afetados foram aqueles de renda baixa e média baixa, que perderam em média 10% e 15% do PIB agrícola, respectivamente, colocando ainda mais em risco a segurança alimentar das populações carentes.
No Brasil, a seca na região Sul e em partes do Centro Oeste e do Sudeste entre o fim de 2022 e o primeiro trimestre do ano passado levou a prejuízos de US$ 15,3 bilhões, sobretudo na produção agrícola.
A expectativa para a safra 2023/2024 não é melhor devido a uma provável redução na colheita de soja, tendo sido registrado abandono de lavouras e migrações para outras culturas, como o algodão, no Centro-Oeste, no Sudeste e na região conhecida como Matopiba, que abrange Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia.
Para a agricultura familiar, a projeção é ainda pior, já que feijão, milho e mandioca – bases da alimentação nacional – estão entre as culturas mais vulneráveis às mudanças climáticas, assim como a produção leiteira.
E a agricultura familiar ainda se encontra pouco amparada, contrariamente à produção de commodities, que é coberta por mecanismos de seguro geralmente acoplados aos financiamentos, em sua maior parte subsidiados por recursos públicos.
Melhorias no Plano Safra, como redução de juros e aumento do valor de financiamento, ainda são insuficientes para atender a um setor que emprega 67% dos trabalhadores agrícolas brasileiros. Face a eventos extremos de chuva ou seca, o pequeno produtor rural acaba perdendo sua produção e acumulando dívidas.
Calor e estiagem extremos afetaram também, em 2023, alguns dos rios mais volumosos da Terra, situados na bacia amazônica, nos territórios de Brasil, Colômbia, Peru e Venezuela. Comunidades ribeirinhas do rio Negro, do Baixo Amazonas e do Tapajós ficaram ilhadas, sem acesso a comida, água potável ou serviços de saúde. Botos e tartarugas morreram e, devido à diminuição da concentração de oxigênio nas águas, milhares de peixes pereceram também.
Para ribeirinhos e pescadores artesanais, que têm no pescado sua principal fonte de proteínas e geração de renda, apesar do aumento gradual e eventual normalização do nível das águas, os impactos devem ser sentidos por alguns anos, já que a abundância de peixes adultos e jovens diminuiu, comprometendo o restabelecimento de estoques pesqueiros e colocando em risco a segurança alimentar e a própria sustentabilidade da pesca.
Saúde em risco
Além de problemas de nutrição, a seca extrema na região amazônica acentuou a incidência de doenças associadas a má qualidade da água e alimentos contaminados. Em outubro de 2023, a Secretaria de Vigilância em Saúde do Amazonas registrou um aumento de 28% no número de casos de doenças gastrointestinais em relação a outubro de 2022.
A saúde das populações de cidades do Amazonas tem sido afetada também por fumaças desencadeadas por queimadas que acabam tomando grandes proporções ainda em consequência da estiagem histórica que assolou a região no ano passado.
Em outubro e novembro de 2023, índices apontados pelo World Air Quality Index (WAQI), que registra o acúmulo de material particulado e gases poluentes como ozônio e monóxido de carbono na atmosfera, registraram valores até 10 vezes mais elevados que o recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Moradores de Manaus relataram falta de ar, tontura e sensação de queimação nos olhos. Em janeiro deste ano, o número de focos de calor no Amazonas aumentou em 245% em relação a janeiro de 2023.
O aquecimento global exacerbado pelo desmatamento tem afetado também a saúde de cerca de 210 mil trabalhadores ao ar livre dos setores agrícola, florestal e pesqueiro nos estados do Mato Grosso e Pará, segundo estudo que considerou o período 2003-2018.
Trabalhar em ambientes quentes pode aumentar a temperatura corporal, reduzindo a produtividade e causando tensão térmica e insolação potencialmente fatal, mesmo entre indivíduos jovens e saudáveis.
O estudo indicou aumento médio da temperatura do ar acima de 2°C em 57,9% dos locais recentemente desmatados, em comparação com apenas 7,6% dos locais florestados nesses dois estados. O resultado foi a perda de mais de meia hora de tempo de trabalho seguro por dia devido à maior exposição ao calor.
Com os recordes recentes de temperatura média global, estima-se a perda de mais de duas horas de trabalho seguro por dia e um maior número de pessoas afetadas.
Perdas econômicas
Em 2023, o Brasil ficou em quarto lugar na lista de países que tiveram as maiores perdas econômicas associadas a eventos climáticos. Ao todo, 93% dos municípios brasileiros registraram episódios de calamidade pública e, só com habitações destruídas, foram gastos mais de US$ 5 bilhões nos últimos dez anos.
Dado o tamanho continental do país, não é difícil que fenômenos opostos como seca e inundação ocorram simultaneamente em diferentes regiões. No ano passado, o governo federal destinou US$ 1 bilhão para risco geológico e US$ 2 bilhões para risco hidrológico, insuficientes para cobrir o volume de incidentes tanto em zonas urbanas quanto rurais, e para contemplar cerca de 10 milhões de pessoas morando em área de risco no Brasil.
Para 2024, os recursos previstos, em conjunto, devem dobrar, mas ainda podem ser insuficientes, dependendo da abrangência e da frequência dos problemas. Por exemplo, em 2022, 708 mil pessoas afetadas por eventos climáticos extremos migraram de suas regiões de origem, o maior número desde 2008, que representa 8% dos deslocamentos internos somados para todos os países do mundo naquele ano, segundo o 2023 World Population Data Sheet.
Embora esses deslocamentos no Brasil ainda se concentrem em zonas sujeitas a deslizamentos, eles começam a afetar também comunidades de zonas remotas.
Estamos juntos
Além de recursos, o enfrentamento de riscos climáticos requer abordagens múltiplas e cada vez mais integradas. O ano de 2023 quebrou recordes de temperatura média global, com registros quase diários de episódios associados a extremos climáticos, resultando em impactos diversos e em níveis sem precedentes em todo o mundo.
A redução de perdas humanas e da biodiversidade, bem como de perdas materiais requer uma melhor compreensão dos diferentes impactos gerados, assim como das interações entre eles que tornam populações e regiões ainda mais vulneráveis aos efeitos das catástrofes.
Portanto, para abranger essas múltiplas dimensões, planos de prevenção de risco e adaptação às mudanças climáticas devem apresentar um olhar antecipado para essas populações vulneráveis e propor ações rápidas, integradas e holísticas, facilitando a criação de soluções de gestão de riscos mais escaláveis.
Ações para proteger, melhorar o manejo ou restaurar ecossistemas podem contribuir para evitar ou amenizar os efeitos das mudanças climáticas. Mas elas precisam ser imediatas e coordenadas entre toda a sociedade, governo, empresas e organizações não governamentais para, juntos, fornecerem soluções coletivas que busquem resiliência e adaptação climática, além de justiça ambiental.