Um momento histórico para a conservação da água
Por Samuel Barreto, Líder de Sistemas Alimentares e Água da TNC Brasil.
Finalizamos o mês de março com um marco histórico para a agenda ambiental: a realização da segunda Conferência da ONU sobre Água, nos dias 23 e 24 de março, em Nova Iorque, 46 anos após a primeira edição, que havia sido realizada em Mar del Plata, na Argentina, em 1977.
Apesar de ainda não termos um mecanismo global de governança de águas, como vemos nas conferências do Clima e da Biodiversidade, o tema água teve o seu patamar elevado em termos de importância e relevância. Tivemos mais de uma centena de países membros participando de um momento que contou com governos, organismos multilaterais, sociedade civil, empresas e outros setores interessados em debater este tema tão importante para todo o planeta.
Diferentemente da Conferência das Partes (COP) do Clima ou da Biodiversidade, onde acordos são estabelecidos, nessa Conferência não havia um acordo a ser assinado, mas um relatório está sendo elaborado e servirá de base para revisão integral de meio termo (2018-2028) da implementação da Década da Ação sobre Água e Saneamento. Esse documento vai nos indicar como estamos e o que falta para alcançar os objetivos contidos na Agenda 2030 no que diz respeito à água. E como muitos dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) estão atrasados, o progresso na implementação do ODS 6 (água e saneamento) é crucial para o alcance dos demais. O desafio é gigantesco e ainda temos um longo caminho pela frente, especialmente no que diz respeito à governança global da água.
Neste sentido, ouvimos declarações muito fortes e importantes no evento, que são avanços para um futuro mais próspero para as águas, como a fala do secretário-geral da ONU, António Guterres, de que a água deve estar no centro da agenda política global, sendo um bem de uso comum, e como tal deve ser tratada.
Para isso, a cooperação e as parcerias serão indispensáveis, de modo a garantir o acesso à água e ao saneamento como um direito humano fundamental para as necessidades básicas de saúde e bem-estar, assim como o direito ecossistêmico com a recuperação das nossas águas e bacias hidrográficas e a água como um elemento estratégico para a paz no mundo.
Sabemos da importância deste debate, dado que mais de 2 bilhões de pessoas no mundo ainda não têm acesso à água potável e cerca de 3,6 bilhões não têm saneamento básico. Além disso, não podemos nos esquecer dos riscos hídricos que corremos com a degradação dos ecossistemas aquáticos que ficam menos resilientes aos extremos climáticos.
Entre 2001 e 2018, de acordo com a ONU Água, 74% de todos os desastres naturais foram relacionados à água, seja por excesso ou escassez. Este cenário desafiador mostra que precisamos nos unir para dar voz e respostas a todos os envolvidos, pois são os vulneráveis que ficam em situação ainda mais frágil com essas calamidades.
Por isso, é impossível falar em gestão da água sem falar de justiça socioambiental, questões de gênero, diversidade e equidade. Ninguém faz nada sozinho, é preciso haver cooperação e ações conjuntas para que consigamos avançar nesta agenda. Nesse sentido, a agenda da adaptação às mudanças climáticas também foi um dos pontos centrais do evento.
Do ponto de vista da TNC, a Conferência foi extremamente produtiva por possibilitar uma verdadeira integração entre os diversos setores do poder público, do mundo corporativo e da sociedade civil. Foi possível perceber na prática que as ações não se sustentam por si só, mas sim na integração entre os envolvidos na convergência de uma agenda e objetivo comuns com destaque para a adequada aplicabilidade da ciência e da governança incluindo uma peça importante para a segurança hídrica com Soluções baseadas em Natureza (SbN).
Um exemplo inspirador de governança dos recursos hídricos com Organismos de Bacias Hidrográficas que temos aqui no Brasil possibilitou boa parte da recuperação do rio Jundiaí. Durante muito tempo esse rio esteve enquadrado na classe 4, pior nível de classificação de rios de acordo com o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), e era considerado um rio morto, assim como o Tietê na extensão que atravessa a capital e outros municípios da Região Metropolitana de São Paulo. O trabalho de recuperação feito na bacia, pactuado entre os diversos atores, incluiu decisão política com investimentos para as ações de despoluição e redes coletoras de esgoto para tratamento da água, o que elevou o Jundiaí à categoria de classe 3, permitindo aos municípios, inclusive, captar água durante a crise hídrica de 2014-2015, que, mediante tratamento adequado, serviram de fonte de abastecimento.
Exemplos como esse, nos mostram que é possível, por meio de boa governança e investimentos, avançar na agenda da segurança hídrica. Para isso, precisamos colocar a água no centro da agenda política global, como defendeu o secretário-geral da ONU. Neste sentido, foi importante ouvir do secretário executivo do Ministério do Meio Ambiente e Mudanças do Clima, João Paulo Capobianco, que liderou a delegação brasileira na Conferência, que a agenda azul é prioritária para este governo e que a base da gestão dos recursos hídricos deve estar na justiça socioambiental.
Além disso, pudemos promover o debate e fazer o lançamento do Reservatório Invisível, um estudo inédito da TNC que evidencia como as SbN, como a restauração florestal, trazem impactos concretos para a segurança hídrica a partir da proteção e recuperação dos mananciais. O projeto aponta o impacto econômico e hidrológico da restauração na disponibilidade de água dentro do Sistema Cantareira, em São Paulo, e como essas medidas amorteceriam perdas econômicas considerando o período de 2014 e 2015, em que a região passou pela pior seca da sua história registrada até o momento.
Nesse estudo encontramos uma melhor relação custo-benefício de intervir em 14% da área do Sistema Cantareira. Isso representa 32 mil hectares a serem restaurados com florestas em áreas que trariam um maior impacto, como as de recarga de água subterrânea, por exemplo. Nesse cenário, com intervenções em pontos-chave das bacias hidrográficas e mananciais que compõem o Sistema Cantareira, um dos benefícios seria o aumento de até 33% de água no sistema. Enfatizo que não é água no rio, no reservatório, mas água no sistema. Isso significa que a partir da chuva e com restauração destas áreas haveria melhor infiltração da água no solo, reabastecendo os lençóis subterrâneos. Além disso, foi realizada uma análise econômica comparando o cenário proposto para o período da crise de 2014-2015. Os resultados mostraram que poderia ter havido uma redução de até 28% das perdas econômicas, o que corresponderia a cerca de R$ 444 milhões em perdas evitáveis totais.
Colocamos proposições com soluções efetivas na mesa. E saímos com grandes expectativas do que há por vir. O Brasil se abre novamente para o diálogo com outros países, sinalizando e reiterando a cooperação internacional, sempre com foco na equidade, na justiça socioambiental, no combate à pobreza e na recuperação das bacias hidrográficas como eixos para o desenvolvimento do país.
Publicado originalmente em Um Só Planeta
12 de abril de 2023
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