25 anos da Lei das Águas no Brasil: conquistas, desafios e ameaças com o PL do Novo Marco Hídrico
Não é razoável propor alteração em uma das leis mais importantes do país, sem consulta à população.
Samuel Barreto - Gerente de Água da TNC Brasil
O Brasil é o país mais rico do mundo em termos de recursos hídricos, contendo quase 13% da água doce disponível no planeta. Possui fenômenos ambientais globalmente singulares, como o Pantanal, a maior área úmida continental do mundo, e a Amazônia, com as mais extensas florestas alagadas, além da riqueza, diversidade e endemismos encontrados no Cerrado, Mata Atlântica, Caatinga e Pampas, formando um conjunto diverso de ambientes e sistemas aquáticos altamente ricos proporcionando diversos serviços ecossistêmicos. Características que também fazem do Brasil uma potência global para a conservação da biodiversidade aquática.
Manejar esse patrimônio e promover os usos múltiplos da água para uma série de atividades estratégicas para o país de maneira sustentável não é tarefa simples. Especialmente por se tratar de um recurso natural limitado. A Lei 9.433 de 1997, conhecida como a Lei das Águas do Brasil e fruto de uma grande mobilização da sociedade civil organizada, é parte importante para responder a esses desafios. Entretanto, propostas de mudança contidas no Projeto de Lei (PL) com o Novo Marco Hídrico – e feitas sem consulta à sociedade – ameaçam um princípio da água como bem público, esvaziam o diálogo com as esferas locais, entre outros aspectos que detalho na sequência.
A Lei das Águas do Brasil instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH), estabeleceu instrumentos para a gestão dos recursos hídricos de domínio federal (rios que passam por mais de um estado ou fazem fronteira) e criou o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (SINGREH). Seu objetivo geral foi estabelecer um pacto nacional com a definição de diretrizes e políticas públicas voltadas para a melhoria da oferta de água, em qualidade e quantidade, gerenciando as demandas e considerando a água um elemento estruturante para a implementação das políticas setoriais, sob a ótica do desenvolvimento sustentável e da inclusão social.
Assim, a PNRH criou uma nova e importante estrutura para a gestão dos recursos hídricos, elegendo diretrizes de integração com outras políticas públicas correlatas, promovendo a gestão descentralizada das bacias hidrográficas e a participação da sociedade por meio dos comitês de bacias hidrográficas. Trouxe fundamentos importantes como o entendimento de que a água é um bem de domínio público dotado de valor econômico. Foi definido ainda o seu uso prioritário em situações de escassez, voltado ao consumo humano e à dessedentação de animais. A bacia hidrográfica foi definida como a sua unidade de planejamento, cuja gestão deve promover a conservação da água e os usos múltiplos. Estabeleceu-se ainda que haveria participação do poder público, dos usuários de água e da sociedade nas tomadas de decisão.
Para completar esse sistema, em 2000, o Governo Federal criou a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), responsável, entre outras coisas, por implementar a lei. Essa corresponsabilidade pelo planejamento da oferta e da demanda da água materializa-se na estrutura institucional encarregada de promover a implementação dos sistemas de recursos hídricos do país e que dispõem de comitês de bacias como base para a promoção da gestão descentralizada. Há atualmente mais de 230 comitês de bacias instituídos no país, reunindo interesses setoriais das grandes bacias nacionais, das bacias transfronteiriças e de microbacias.
Dessa forma, a Lei das Águas do Brasil passava a incorporar o resultado de uma longa caminhada participativa dos diversos segmentos da sociedade na busca da proteção e do uso sustentável da água. Sua criação definia uma nova forma para a gestão dos recursos hídricos, com instrumentos econômicos que ajudam a viabilizar esse sistema e a promover o uso eficiente da água. Uma verdadeira revolução conceitual.
Tanto a lei nacional quanto as leis estaduais de água, com os seus órgãos gestores, conselhos, comitês e agências de bacias hidrográficas, promoveram diversas conquistas em relação à redução e gerenciamento de conflitos pelo uso da água. Um destes exemplos são os mecanismos de alocação negociada de água no Nordeste. Promoveram ainda a recuperação e melhoria da qualidade da água em diversas bacias hidrográficas por meio de decisões, orientações técnicas contidas em seus planos de bacia e de investimentos financeiros. Um deles executado no rio Jundiaí, em São Paulo, em que os recursos aplicados em ações de saneamento melhoraram a qualidade da água, passando de um rio de classe de água 4 (considerado um rio morto) para um rio de classe 3. Essa transformação permitiu, após o tratamento da água, abastecer milhares de pessoas durante a pior seca do estado, nos anos de 2014 e 2015.
Outras diretrizes para a melhoria da qualidade ocorreram também no ambiente rural, com investimentos em sistemas de saneamento. Assim como estratégias de conservação e recuperação das bacias hidrográficas, incorporando soluções baseadas na natureza, como a restauração florestal, como parte das respostas na promoção da segurança hídrica.
Também foi responsável por abrir um espaço importante de participação da sociedade, o que possibilitou ampliar a transparência e o controle social. Como consequência desse processo de consolidação do uso das águas no Brasil, foi criado, em 2017, o Observatório de Governança das Águas, o OGA. Um movimento multisetorial com cerca de 60 instituições e 17 pesquisadores, que tem como foco acompanhar e propor melhorias na governança das águas, por meio de indicadores. Este trabalho hoje abrange áreas onde residem cerca de 50% da população brasileira.
Apesar das diversas conquistas, os desafios também são enormes. Uma vez que os rios ainda estão sendo poluídos; há um sobreuso da água subterrânea e superficial; o desmatamento voltou a crescer em diversas regiões do país; há contaminação pelo uso dos agrotóxicos; recursos aquáticos são superexplorados; áreas úmidas, rios e outros ecossistemas reguladores de águas são drenados, canalizados, represados e desviados; e ecossistemas essenciais para a proteção e conservação das águas, como matas de galeria, mananciais e nascentes, estão sendo rapidamente degradados. Todos estes fatores, em sinergia com os efeitos das mudanças climáticas, afetam a biodiversidade, o processo de funcionamento de ecossistemas naturais e a disponibilidade de água para uso doméstico, industrial, agrícola, na geração de energia entre outras finalidades.
Mas nesse momento há um risco estruturante na proposta do Governo Federal com o Projeto de Lei (PL) no 4.546/2021, que institui a Política Nacional de Infraestrutura Hídrica e está sendo chamado do Novo Marco Hídrico. O projeto, que pegou de surpresa toda a comunidade das águas no Brasil – uma vez que a proposta veio à tona pela imprensa –, já foi encaminhado ao Congresso Nacional e aguarda decisão do Presidente da Câmara dos Deputados.
Quote: Samuel Barreto
O PL não foi apresentado e discutido em nenhum comitê de bacia hidrográfica, seja federal ou estadual. Em uma rápida apresentação no Conselho Nacional de Recursos Hídricos ampliaram-se as dúvidas e os questionamentos.
O PL representa uma ruptura e desestruturação dos princípios, fundamentos e instrumentos da Lei das Águas do Brasil. Embora aborde a infraestrutura hídrica, o seu foco está concentrado na infraestrutura cinza, persistindo a visão de que a solução para qualquer questão hídrica se encontra apenas na engenharia. O PL não aborda a segurança hídrica; não estabelece diretrizes e mecanismos para fomentar a resiliência e recuperação das bacias hidrográficas, seja no campo ou nas cidades; não aborda as soluções baseadas na natureza, que representam quase 40% das respostas no combate às mudanças climáticas; entre outros pontos estruturantes para o tema.
Para exemplificar uma dessas rupturas, o PL institui a cessão onerosa de direito de uso dos recursos hídricos. Em outras palavras, cria um mercado de água, permitindo a sua comercialização e alterando um dos fundamentos da Lei das Águas como um bem de domínio público. É um assunto que merece muita atenção de todos os brasileiros, considerando a vulnerabilidade na base de dados de licenças de uso da água (também conhecidas como outorgas), de forma a evitar que medidas como essa acentuem ainda mais a desigualdade, as disputas e os conflitos pelo uso da água.
Outro ponto de atenção é que esta mudança pode romper a definição de prioridade no uso em casos de escassez, que hoje é destinada ao abastecimento humano e à dessedentação de animais. Além disso, retira dos comitês o direito de aprovar os seus planos de bacias ao submeter essa decisão para instâncias superiores de gestão, que estão mais distantes das realidades locais.
É verdade que a Lei das Águas não é perfeita e que precisa de aprimoramentos. Mas as lições aprendidas na mitigação do risco hídrico mostram que os bons resultados se deram com liderança, ação coletiva, pragmatismo e boa governança das águas com base nos princípios, fundamentos e instrumentos dessa Lei. Portanto, é tão importante que a lei atual seja aprimorada, fortalecida e não fragilizada.
Fortalecida por meio da adequação das estruturas oficiais de funcionamento dos Sistemas de Recursos Hídricos; da ampliação da capacidade dos órgãos gestores; da disponibilização de uma estrutura mínima para o funcionamento dos comitês de bacia, com seus representantes bem preparados; do aprimoramento na produção e sistematização de informações técnicas que subsidiam melhores decisões entre os diferentes entes que compõem o sistema; da implementação de instrumentos de gestão dos recursos hídricos; do estímulo à participação dos municípios; da sociedade amplamente informada e mobilizada, entre outros aspectos.
A gestão da água representa uma grande oportunidade pelo seu poder de integração e por afetar todos os segmentos da sociedade. O Brasil ainda tem uma boa Lei das Águas, que precisa ser compreendida e defendida perante a opinião pública e junto ao Congresso Nacional, especialmente nesse momento em que o PL no 4.546/2021 cria uma ruptura com o atual marco. Sugiro a todos que acompanhem este debate e estejam atentos e vigilantes na defesa da gestão participativa da questão hídrica.
Publicado originalmente no portal Um Só Planeta
16 de fevereiro de 2022
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