Além do sustentável: um sistema alimentar para restaurar o planeta
A produção de alimentos é a principal ameaça à natureza - um sistema regenerativo pode mudar isso.
Por Michael Doane, Diretor Global da Prioridade Fornecer Alimentos e Água.
Um dos aspectos que torna o COVID-19 tão devastador é a maneira como ele prejudica os vínculos que mantêm a sociedade unida. Infelizmente, as medidas de distanciamento necessárias para retardar a propagação da doença e salvar vidas separam muitos dos sistemas interconectados que fazem parte do nosso mundo moderno.
Quando falamos de alimentos, inerentemente estamos falando de vínculos, sejam esses os vínculos sociais que formamos quando compartilhamos uma refeição com alguém ou as conexões entre todos os atores e indústrias necessários para produzir, processar e distribuir os ingredientes dessa refeição. No momento, todos esses vínculos estão sendo postos à prova.
Considere o seguinte: trabalhadores doentes podem causar escassez de mão-de-obra e redução da produção nos campos e nas instalações processadoras de alimentos. Mesmo quando há produção de alimentos, o transporte e desafios de importação significam que os produtos nem sempre chegam às prateleiras. E mesmo quando há comida nas prateleiras, as pessoas que perderam seus empregos podem não ter como comprá-la. A COVID expôs o quão vulneráveis nossos sistemas alimentares são às interrupções em cada ponto da jornada do campo à mesa.
Infelizmente, a COVID está longe de ser a única ameaça aos nossos sistemas alimentares atualmente. Além dos sistemas comerciais e econômicos que foram bastante abalados por essa pandemia, há outra camada de sistemas ecológicos que sustentam nossa produção de alimentos. Amparando cada uva e lentilha existe um mundo inteiro de micróbios que enriquecem o solo, insetos polinizadores, plantas que filtram a água e uma orquestra de vidas que dependem umas das outras. E as mudanças climáticas ameaçam a todos eles.
A próxima crise de alimentos?
Ao contrário da COVID, os impactos causados pelas mudanças climáticas não são novos, fomos alertados repetidamente que nossos sistemas de produção de alimentos não são sustentáveis. O Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) alertou que as mudanças climáticas já estão reduzindo a produção de alimentos em regiões mais secas e que qualquer aquecimento acima de 1,5° centígrados das médias pré-industriais terá impactos cada vez mais graves nos sistemas alimentares.
Também sabemos há algum tempo que a maneira como produzimos a maioria de nossos alimentos atualmente agrava as mudanças climáticas e a perda de biodiversidade. A agricultura é responsável por um quarto das emissões de gases de efeito estufa, 70% do uso de água doce e 80% da perda de habitats. Atualmente, temos um ciclo vicioso entre a produção de alimentos e a degradação da natureza.
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Mas a COVID expôs a rapidez com que conturbações em nossos sistemas alimentares podem causar crises. Se esperarmos até que os impactos climáticos se tornem ainda mais graves e generalizados, provavelmente será tarde demais para evitar outra crise global. Hoje, não basta produzir alimentos de maneira a minimizar os danos ao planeta. Precisamos produzir alimentos de maneira a restaurar ativamente a saúde do planeta.
Na TNC, chamamos essa ideia de sistemas alimentares regenerativos. A ideia é produzir alimentos, na terra ou no mar, de maneira a restaurar ativamente os habitats e proteger a biodiversidade nas e ao redor de áreas de produção e ao mesmo tempo reduzir as emissões de gases de efeito estufa. Em alguns casos, os sistemas alimentares regenerativos podem produzir ainda mais alimentos que os sistemas tradicionais e, ainda mais importante, eles preservam os meios de subsistência dos agricultores, pescadores, pecuaristas e outros que trabalham para fornecer nossos alimentos, agora e no longo prazo.
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25%
A agricultura é responsável por um quarto das emissões de gases do efeito estufa.
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70%
A agricultura consome 70% da água potável do mundo.
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80%
A agricultura causa a maior parte do desmatamento ao redor do mundo.
Sistemas alimentares regenerativos
- Produzir alimentos, seja na terra ou no mar, de formas que restaurem habitats ativamente e protejam a biodiversidade nas áreas de produção e ao seu redor
- Reduzir emissão de gases do efeito estufa
- Preservar a subsistência de fazendeiros, pescadores, pecuaristas e outros que trabalhem para fornecer alimentos
Sistemas Alimentares Regenerativos
No caso da maioria da comida em nossos pratos, a jornada do “campo à mesa” não é tão simples, é mais parecido com do campo (ou barco), à processadoras, à distribuidoras e aos varejistas, com o itinerário moldado por finanças privadas, subsídios do governo, marketing ao consumidor e dezenas de outros fatores. Criar sistemas alimentares regenerativos significa considerar mudanças ao longo de toda a jornada. Para mudar nossos métodos de produção para que eles regenerem a natureza, em vez de degradá-la, precisamos mudar os incentivos de mercado para promover uma maior adoção de práticas de produção regenerativa, e devemos acelerar esses esforços nas principais áreas de produção global na próxima década.
Então como seria isso?
Regenerando a natureza: Saúde e aquicultura
Vamos começar com algo fundamental: o chão sob nossos pés. O solo não é apenas matéria inerte, o solo saudável está cheio de organismos vivos que ajudam a gerar os nutrientes que as lavouras precisam para crescer. Porém, muitas práticas agrícolas convencionais degradam inadvertidamente a saúde do solo ao longo do tempo, o que, por sua vez, pode reduzir o rendimento das culturas. A adição de fertilizante, quando disponível, pode compensar a redução de nutrientes no solo, mas se for aplicado na hora errada ou quando não houver amortecedores vegetais nos campos, poderá ser levado para cursos de água próximos, prejudicando os ecossistemas de água doce, ou até os ecossistemas marinhos, como quando o excesso de nutrientes segue até o oceano e cria "zonas mortas" hipóxicas.
A adoção de práticas como cultivo mínimo ou plantio direto e o uso de vegetação de cobertura pode restaurar a complexa biologia do solo, essencial para a produção de culturas a longo prazo, enquanto também reduz as emissões de gases de efeito estufa e o escoamento de nutrientes. É uma situação ganha-ganha para o agricultor, os ecossistemas locais e o clima. E quando o excesso de nutrientes ainda assim vai parar no mar? Os sistemas alimentares regenerativos também podem ajudar nessa situação. Certas espécies de aquicultura, como ostras, filtram ativamente a água e assimilam o excesso de nutrientes - elas realmente melhoram a qualidade da água para outras espécies que estejam na área. Na verdade, quando praticada corretamente, a aquicultura oferece muitos benefícios regenerativos: possui as menores emissões de gases de efeito estufa de qualquer forma de produção de alimentos de proteína animal, e a aquicultura de algas marinhas pode até ser utilizada para mitigar as emissões de gases de efeito estufa.
Incentivos financeiros para uma localização mais inteligente das culturas
Mas as práticas de produção, embora sejam um ponto de partida essencial, representam apenas um elemento de um sistema alimentar. Processamento, distribuição, varejo, financiamento - esses elementos também determinam o quão sustentável nossos alimentos podem ser. Considere a soja, uma das culturas mais onipresentes do mundo, e um dos principais fatores de conversão de habitat nos ecossistemas do Cerrado no Brasil e do Chaco na Argentina. Mas a soja não precisa substituir o habitat natural, há muitas terras já desmatadas que são adequadas para a produção de soja. A chave é criar os incentivos de mercado certos para priorizar a produção nessas terras.
A TNC está trabalhando com traders globais, empresas de insumos e bancos para oferecer financiamento atraente a longo prazo aos agricultores que plantam soja em terras previamente desmatadas. E como a conversão de habitat cria temperaturas mais altas e outros impactos climáticos locais que reduzem a produção de soja, evitar o desmatamento cria benefícios adicionais para os agricultores de toda a região - para não falar dos benefícios a longo prazo de mitigar as mudanças climáticas globais.
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Ampliação através de ações corporativas e políticas inteligentes
Essas mudanças exigirão que as grandes empresas do sistema alimentar global liderem ativamente o caminho. O sistema alimentar global é vasto, conectando as decisões independentes de milhões de agricultores, pescadores e consumidores todos os dias. Mas não há dúvida de que as grandes empresas exercem uma influência incrível em nível global, especialmente quando se trata dos sistemas de processamento e distribuição que conectam produtores e consumidores.
A ideia de depender dessas empresas para liderar essa mudança pode ser controverso para alguns, afinal, muitas dessas mesmas empresas criaram o sistema alimentar global que hoje acelera as mudanças climáticas e a perda de biodiversidade. Certamente nem todas as empresas estão preparadas para fazer essa mudança fundamental nos sistemas alimentares regenerativos, mas algumas já a estão fazendo agora, e elas merecem nosso apoio e colaboração.
De fato, o último mês trouxe uma enxurrada de compromissos positivos de grandes empresas do setor de alimentos. Só nesta semana, o Grupo Syngenta expandiu seus compromissos de sustentabilidade por meio do "The Good Growth Plan”, plano de Agricultura Sustentável, que inclui promessas de reduzir as emissões de carbono das operações agrícolas da empresa em 50% e ajudar os agricultores a lidar com os padrões climatológicos extremos causados pelas mudanças climáticas.
Os compromissos mais recentes da Syngenta foram feitos logo após o investimento de 1 bilhão de euros da Unilever em um "fundo climático e da natureza" e o anúncio do Projeto Gigaton pela Walmart no início deste ano, uma iniciativa para evitar 1 bilhão de toneladas de gases de efeito estufa da cadeia de valor global até 2030. Essas empresas não transformarão o sistema global de alimentos sozinhas, mas não conseguiremos uma transformação significativa sem elas.
Um futuro melhor para os alimentos
Sou economista por formação, conservacionista por vocação e um fazendeiro de coração. Por todas essas razões, a reforma do sistema alimentar é profundamente pessoal para mim. É pessoal por causa da conexão que sinto com outras pessoas que ganham a vida fornecendo alimentos. É pessoal porque me preocupo profundamente com o mundo natural e sei que mudar nosso sistema alimentar é a chave para um futuro promissor. E é pessoal porque passei a maior parte da minha vida estudando mercados e estou convencido de que eles são essenciais para promover mudanças no ritmo e na escala necessários.
Os alimentos são mais do que algo que comemos para sobreviver - são parte de como prosperamos. Compartilhar o pão é um ritual social, para alguns, um ritual sagrado, que transcende o tempo e as culturas. Se perguntados do que mais sentiram falta durante o isolamento exigido pela COVID, muitas pessoas dirão que foi compartilhar refeições com amigos e familiares.
É claro que, se o pior que você teve que passar foi a perda de refeições em comum, você (e eu) estamos entre os sortudos, isso significa que ainda temos comida em nossas casas e a boa saúde e força para desfrutá-la. Mas não poderemos contar com isso indefinidamente se continuarmos produzindo alimentos de maneiras que degradam o planeta e agravam as mudanças climáticas.
Enfrentamos um desafio existencial, mas existe uma solução baseada na natureza. Porém, nossa mudança para um sistema alimentar regenerativo precisa acontecer rapidamente, na próxima década. Isso requer inovação proposital, coordenação global e disposição para enfrentar interesses arraigados. Mas o futuro que nos espera se não fizermos nada é muito pior do que jantar sozinho.