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A governança ambiental e os desafios da consulta a povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais

Por Mônica Vilaça e Raial Orutu da equipe de ciências da TNC Brasil

© Fernanda Macedo/TNC

Um desafio nas discussões ambientais é o reconhecimento das diferentes vozes e modos de vida. São interpretações do mundo, formas de pensar o cotidiano e imaginar o futuro que, quando colocadas em diálogo, permitem, coletivamente, construir pontes e criar possibilidades. Esta capacidade de criação é algo central frente à urgência da agenda climática e ambiental, que têm exigido uma busca contínua por negociação e acordos de forma que seja possível solucionar conjuntamente a condição atual de sociedades em risco, e quiçá construir a esperança de uma realidade vindoura.

Nesta direção, o reconhecimento do meio ambiente como parte do contrato social tem sido estabelecido por instrumentos, leis e convenções que enfatizam a urgência de ações para preservar a vida no planeta. Na América Latina, Brasil e Cuba1 foram os primeiros países a estabelecerem leis de proteção ambiental em 1981. De 1972 a 1992, as Conferências das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente pavimentaram um caminho que reconhecia a urgência das agendas de conservação ambiental, e, com isso, a necessidade de estruturas de governança que permitissem a participação efetiva de diferentes partes interessadas nos processos decisórios.

A governança ambiental diz respeito aos mecanismos que são utilizados, como conferências, conselhos, fóruns, câmaras setoriais, leis e projetos, prevendo a escuta daquelas e daqueles que são afetados pelas mudanças climáticas, considerando a forma como as diferentes sociedades se relacionam com o ambiente ao seu redor. Ao propor pensar como se relacionam com a natureza busca-se lembrar que existem maneiras diferentes de compreendê-la.

Antônio Bispo2, pensador quilombola, propunha pensar que a condição para estarmos no mundo se deve ao compartilhamento, buscando um ciclo de equilíbrio entre pessoas, árvores e animais, que permitiria a vida das gerações atuais e futuras. A ruptura deste ciclo com o uso exaustivo de terras, desmatamento de florestas, redução da biodiversidade e poluição das águas e rios, teria criado uma desordem que tem impactado mais fortemente aqueles e aquelas que sempre buscaram o compartilhamento como princípio. 

Assim, um dos primeiros desafios das estruturas de governança dos governos nacionais, estaduais e municipais é garantir o diálogo entre as diferentes narrativas sobre a natureza. Os povos indígenas e quilombolas no Brasil representam 1,5% da população do país, segundo dados do último censo3, sendo os povos indígenas responsáveis pela proteção de 13,9% do território nacional (ISA, 2024), com seus modos de vida baseados no reconhecimento e profunda interdependência com florestas e rios. Segundo a publicação Os povos Indígenas e Tribais e a Governança Florestal, da FAO4, as taxas de desmatamento dentro de territórios indígenas no Brasil são 2,5 vezes mais baixas que fora deles.

Estes dados ajudam a compreender a importância da escuta e do consentimento dos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais quando se discute políticas e ações de conservação e proteção ambiental que podem atingir seus territórios. No entanto, esta escuta deve prever o respeito à autonomia, aos tempos dos povos, e a seus modos de vida, o que levou ao estabelecimento de que a consulta, que busca obtenção de consentimento, deve ser livre, prévia e informada. Esta forma de consulta, estabelecida pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT5, é uma obrigação sempre que uma ação puder afetá-los.  

Assim, este processo deve seguir a tríade de ser: prévia, ou seja, anterior a quaisquer intervenções e tratativas de um projeto ou empreendimento; livre, sem qualquer tipo de influência externa, sobretudo das partes interessadas no projeto ou empreendimento e informada, ou seja, com o fornecimento de todas as informações necessárias ao livre esclarecimento e tomada de decisão das comunidades. 

O direito à consulta prevê que os procedimentos para sua realização sejam definidos exclusivamente por quem será consultado. Quem consulta deve respeitar as diretrizes estabelecidas e compreender que a construção de consentimento é uma questão particular, interna dos povos e comunidades e que o processo pode resultar em não consentimento.

É neste contexto que surgem a partir de 20146 os protocolos de consulta, que vêm sendo elaborados por povos e comunidades, e tornaram-se expressão de como as consultas devem acontecer e como as deliberações serão realizadas. A construção destes documentos foi um importante momento de formação, articulação e organização para povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais. 

Os protocolos traduzem a diversidade de organização dos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais, além de compartilhar os elementos necessários para que as consultas sejam culturalmente adequadas. Preocupações com a linguagem apropriada na partilha de informações, com a garantia de que o processo reconheça suas dinâmicas internas de organização, com a proteção à sua imagem em fotografias e vídeos, e com o respeito a seus tempos de plantio e colheita, e também calendários espirituais e religiosos, são algumas das informações que permeiam os protocolos. 

É importante entender, que a consulta livre, prévia e informada deve acontecer mesmo quando um povo ou comunidade não possui um protocolo elaborado, e, neste caso, o primeiro passo seria a própria construção do processo. Os processos de consulta são um direito dos povos e uma obrigação sempre que ações ou projetos possam impactar seus cotidianos e futuros. 

Além dos governos, ações e projetos de organizações não governamentais e empresas que possam afetar povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais também exigem a realização de consulta e aqui as estruturas da governança ambiental, que mediam diferentes partes interessadas, precisam ser consolidadas. Ailton Krenak7 nos lembra da importância de inspirar nossas escolhas à luz do lugar em que queremos viver, e sobre a necessidade de uma subjetividade de diferenças e diversidade. Buscar garantir um mundo mais diverso hoje, apoiado no profundo respeito aos direitos humanos de povos e comunidades, é o que pode permitir um futuro possível para as futuras gerações.

Publicado originalmente em Galileu
19 de abril de 2024

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